Aqui você encontrará notícias, dicas de sites, cursos, músicas, eventos e atividades que estejam ligadas a projetos de Jornal e Educação e Jovens Leitores.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Narradores de Javé: a memória entre a tradição oral e a escrita


Pegamos caronma na dica do projeto A tarde e Educação, do jornal A Tarde (BA) e divulgamos abaixo artigo de Maria Aparecida Bergamaschi sobre o filme Narradores de Javé. Leia o texto e veja como você pode trabalhar com ele e/ou o filme com seus alunos. Boa leitura!!!
Começo minha fala a partir do que considero desencadeador do enredo do filme de Eliane Caffé: o prazer de “contar causos” para passar o tempo. Penso que o filme é uma homenagem aos contadores de histórias, aos contadores de causos. Se ocorridos ou inventados não importa, o que quero destacar é a sedução que exercem. O passageiro que perde o horário da embarcação ganha o abrigo (o quartinho dos fundos), mas, principalmente, ganha o entretenimento, a história do Vale de Javé narrada como se acontecida. Se Homero é evocado no filme para comparação com Antônio Biá é porque, com igual importância, podemos evocar os contadores dos contos de uma tradição brasileira, ameríndia e afro-descendente.

Também gostaria de destacar outro aspecto forte que o filme suscita e que remete à história do Brasil: o acesso à terra, o direito ancestral dos povos americanos, direito que é continuamente usurpado por outra forma de relação com a terra introduzida nesse continente pelos europeus desde os primórdios da colonização. Desde então ocorrem contínuas migrações como a mostrada pelo filme e forjam uma legião infinita de sem-terras. A terra, cujos limites eram cantados, porque, como organismo vivo escuta e sente, respondendo aos anseios da vida das pessoas que a cultivam e que nela habitam com reverência. Transformada em propriedade porque entra em cena outra concepção de mundo e outra forma de ocupação: a exploração da terra, o lucro, o bem da maioria em detrimento dos “tantos” que perdem a terra e pedaços de vida (como diz o personagem do filme).

Bem, após essas considerações passo a abordar dois temas que sinto fortes no filme e acredito que foram eles que me mobilizaram para essa conversa: a memória e a oralidade, que os narradores de Javé confrontam com a escrita. O filme mostra a memória dinâmica e não como algo guardado em uma “caixa secreta”, em um baú, como costumamos dizer e que, em algum momento, é resgatada. Acredito que a memória é trabalho, como diz Ecléa Bosi, é imaginação, como mostram os narradores de Javé. Memória: lembrança e esquecimento; memória: trabalho de criação em função do presente.

Diante da ameaça concreta de inundação de suas terras e sem nenhuma documentação formal que comprove que elas lhes pertencem, surge a necessidade de usar a escrita – até então rechaçada (rechaço evidenciado no filme pelo desprezo ao morador que escrevia), a escrita, a ferramenta do Outro – revelador de uma outra cultura é requisitada como última chance de manter suas as terras que foram ocupadas através de outras migrações, em tempos ancestrais. Passam então a realizar um trabalho de memória, evocando lembranças, imaginando um passado épico, uma “história grande” do Vale de Javé, com heróis forjados e requisitados pelos homens – Indalécio – e pelas mulheres mais ousadas – a Maria Dina. E, nessa trama que visa buscar as origens de Javé, aparecem múltiplos elementos da memória individual e coletiva, como por exemplo, a história dos gêmeos, presente nos mitos de origem dos povos indígenas brasileiros. Ex. o mito de origem do povo Guarani também existem gêmeos, que são gerados cada um com um pai.

A relação entre história e memória é intensa e aparece em sua complexidade que dificulta colocar no papel, no “livro da salvação” as lembranças, as histórias contadas, “as idéias que estão na cabeça”. Aparecem no filme memória e história com suas peculiaridades: a história, filha de memória não pode com ela ser confundida e nem, tampouco há uma linearidade de produção da história como registro de lembrança dos fatos do passado. A memória, matéria prima da história é, como esta, produzida num campo de poder, evidenciados no filme por uma disputa para registrar lembranças de pessoas e famílias de maior prestígio. Le Goff (1996) explica que as sociedades “cuja memória social é, sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita” permitem compreender a luta pelo domínio da memória. Diz também o autor que uma das preocupações dos indivíduos e grupos que dominam as sociedades é de tornarem-se também donos das lembranças e dos esquecimentos.

Portanto, história e memória são construções e ocorrem num campo de disputas como bem mostra o filme, em que cada família, cada morador tem a sua versão, constrói um passado para Javé, a partir de seus interesses pessoais e familiares. Vemos também os jogos de sedução de Biá, encarregado dos registros e que usa o poder da escrita para “tirar vantagem” em relação as pessoas que escolhe para registrar as narrativas.

Memória para os gregos antigos era Mnemosyne, filha de Urano (o céu) e Gaia (a Terra). Com Zeus Mnemosyne gerou nove filhas, as musas, responsáveis pela inspiração. Entre elas Clio, a musa da história. A memória, nesse entendimento tem a força da natureza e que, na belíssima exposição HomemNatureza, no Museu da UFRGS, é elemento forte e presente nos entrelaçamentos cultura-natureza. A memória é constituída a partir do presente e tem como função principal manter a coesão do grupo, identificando-os como uma “comunidade de memória”, produzida, criada, como mostram as narrativas dos moradores de Javé. No filme, cada pessoa, especialmente as mais velhas, requer para si o papel de guardiã da memória e o passado épico é recriado como estratégia de luta para manutenção da terra diante da ameaça concreta de inundação provocada pela construção de uma barragem.

A memória, entre lembranças e esquecimentos seleciona a partir dos anseios individuais e coletivos do presente, os fatos que devem e podem ser lembrados e ou esquecidos. E, nesse sentido, o filme mostra as diferentes versões do passado, cada uma com sua legitimidade, cada uma forjada por relações de afetos e desafetos: a disputa dos irmãos envolvendo heranças; o herói versus a heroína lembrada pelas mulheres e desconstruída por lembranças masculinas. A disputa por uma memória épica de grandes feitos ou de um passado fracassado reafirma a memória afetiva, “que tem no coração das pessoas um lugar único e especial”, como lembra
Carreiro ao comentar o filme.

O que interessa naquela situação é falar da fuga ou da retirada? Falar do medo e das frustrações ou da coragem dos ancestrais? São elementos que vem a tona e que a memória oral, com sua dinâmica, dá conta de todos esses conflitos, porém, na iminência de tornar essas narrativas fixas, a necessidade de uma verdade científica, comprovada e, se possível, documentada para escrever. O “terror da escrita” diz Lefrevre, ao abordar os conflitos vividos na modernidade ocidental que processual e conflitivamente abandona a tradição oral e adere à escrita como linguagem principal e de maior poder. Exemplo também são as experiências do povo Guarani com o qual trabalho, que explicitam o cuidado com a memória oral, com as idéias que “guardam na cabeça”, mesmo ao adquirirem a necessária escrita, que dá conta do presente e das relações que precisam estabelecer com as sociedades não indígenas.

Nas sociedades de tradição oral não há necessidade de memorização integral, palavra por palavra, mas o comportamento narrativo como papel mnemônico tem a função de atualizar o passado: “enquanto a reprodução mnemônica palavra por palavra está ligada à escrita, as sociedades sem escrita, excetuando certas práticas de memorização das quais a principal é o canto, atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas”, diz Le Goff e que fica visível no filme: a principal concordância nas narrativas são os limites cantados da terra cultivada por cada família ou grupo.

A escrita, temida pelo povo de Javé, altera a relação com as palavras, fixa as idéias, rouba-lhe o movimento. A escrita é a anti-fala diz Lefevre (1991, p. 164-165), embora também afirme que a escrita jamais consegue suplantar completamente a tradição oral. “O importante é notar o caráter imperativo da escrita e do inscrito e sua duração. A escrita faz a lei. Muito mais ainda, ela é a lei. (…) ela obriga pela atitude imposta, pela fixação, pela recorrência implacável, pelo testemunho (transmissão e ensino) e pela historicidade assim estabelecida para a eternidade”.

Jack Goody (1996), estudioso da tradição oral de povos africanos, oferece alguns elementos para pensar a relação entre escrita e memória oral e a interferência da escrita que penso ser um dos elementos de reflexão proposta por Eliane Caffé. Diz o autor que nas sociedades orais a tradição é transmitida através da comunicação pessoal, das trocas que vão acompanhando o processo de esquecer ou de transformar fatos do vivido que deixam de ser necessários ou pertinentes, ao contrário das sociedades com escrita, cujo passado não pode ser modificado e é considerado distante, separado do vivido. A oralidade permite um refazer constante do passado a ponto de não separá-lo do presente.

Porém, vemos no final do filme uma reconciliação entre oral e escrito, momento em que Biá começa a escrever afoitamente no “livro da salavação”, talvez pela força do acontecimento que literalmente traga Javé. Penso que é um pouco o que diz Michel de Certeau (1988), ao analisar as relações entre oralidade e escrita. Considera impossível dissociar as duas práticas diante da força da memória e da tradição oral: “somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um escrito afina, precisa ou corrige”, relativizando assim a pretensão de uma única produção favorecida sobremaneira pela escrita, em detrimento da oralidade. É também uma evidência que os registros escritos não apagam a experiência vivida, da memória que produz marcas indeléveis nos corpos e que a própria polissemia da leitura revela.

Creio que, com essas idéias, podemos iniciar um debate acerca das questões evocadas pelos Narradores de Javé e que são pertinentes hoje, como alerta Le Goff acerca da atualidade do tema: “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.

Referências Bibliográficas
BERGAMASCHI, M. A. Nembo’e. Enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. 270f. Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz, 1983.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 3a ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
GOODY, Jack y WATT, Ian. Las consecuencias de la cultura escrita. In. GOODY, Jack (comp.). Cultura escrita en sociedades tradicionales. Barcelona, España: Gedisa, 1996, p. 39-82.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática, 1991.
Fonte:
http://filmes.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=116

Nenhum comentário:

Postar um comentário